Alguns dias atrás tive um momento de intimidade
emocional tão grande com meu filho que me inclino a comparar ao imprinting do
nascimento. Aconteceu na hora de dormir e após um momento de descontrole meu
onde tentei impor minha vontade sobre a dele.
Quando ele saiu do banho me mostrou uma bolinha
vermelha que parecia uma mordida de mosquito. Quantas e quantas vezes na vida
ele já havia me mostrado outras assim, pedindo sem palavras que eu passasse a
pomadinha que ameniza coceira. Foi praticamente automático abrir a portinha do
armário do banheiro e pegar a tal pomada. Já com a bolotinha de geléia no meu
dedo, pronta para passar, ele demonstrou nojo e apreensão. A tal pomada não
dói, não é nojenta, no máximo geladinha. E eu lembro, de criança, a sensação de
alívio daquele geladinho.
Então, depois de um dia longo e cansativo,
depois de me esforçar pra colocar meu filho na cama num horário decente porque
no outro dia ele tinha aula, depois de cozinhar o melhor jantar que eu podia, depois
de separar com carinho o pijama para que ele não passasse frio enquanto
procurava, depois de escovarmos os dentes juntos, depois de fazer o meu melhor
em todos os sentidos, ele não quis aceitar a simples pomadinha, um gesto de
cuidado que tentei oferecer. Logo rotulei aquele comportamento de frescura, de
exagero, e falei “vamos passar sim”. Peguei o braço dele e passei a pomadinha em
um segundo, carinhosamente. Ele me olhou, com os olhos cheios de lágrimas já
rolando abaixo pelas bochechas mais lindas desse mundo. E me falou “mãe, não
foi tu mesma quem disse que só eu é que tenho direito de decidir qualquer coisa
sobre meu corpo?”.
Meu mundo caiu. Que tipo de mãe sou eu? Como é
que eu não tinha percebido a violência (por mais relativa que seja) do meu ato?
Só porque eu estava cansada tinha o direito de passar por cima dos meus valores
e daquilo de mais precioso que ensinei? A autonomia, independência, respeito
por si mesmo e pelo outro. Quão importante era aquela pomada naquele momento?
Não tinha nada a ver com a pomada, e sim com meu cansaço, adultismo e, por que
não dizer, ego. Necessidade de mostrar quem é que manda, de mostrar como o meu
ponto de vista sobre o assunto era mais válido que o dele e de encerrar o
assunto. O que é que estou ensinando? Que tudo o que dizemos, por mais
importante e verdadeiro que seja, perde o valor se quisermos demonstrar poder. O
que eu faço agora? Como é que eu conserto a minha cagada?
Sentei e expliquei que sim, ele estava certo.
Eu estava errada e tinha sido boba. Tinha me excedido. Mas eu concordava com
ele e eu não tinha direito de ter feito o que fiz. Comentei que ele tinha
estado mais sensível a coisas como aquela desde o acidente. Que havia passado a
hesitar mais quando eu o toco. Perguntei se ele tinha medo e ele confirmou.
Perguntei se ele sabia por que e ele negou. Resolvi que era um bom momento pra
retomar mais uma vez o assunto do acidente. Eu entendia o que ele sentia e
resolvi mostrar isso, porque ele não tinha as palavras. Eu já passei pelo que
ele passou. Então falei muitas coisas e ele só confirmava com a cabeça,
chorando. Que ele tinha ficado assustado quando aconteceu. Que ele tinha
sentido dor. Que ele tinha sentido medo de contar como aconteceu, porque sabia
que tinha feito “algo errado”. Reafirmei que o que ele tinha feito não era nada
demais e ele não precisava sentir vergonha ou medo, por mais que não devesse
repetir. E que apesar (ou por causa) desse medo de falar do que aconteceu, ele
se mostrou muito forte. Mais forte do que era. Quis andar até o carro em vez de
ser carregado. Falou que não sentia dor. Falou de assuntos triviais. Sorriu. E conforme
eu falava disso que aconteceu no dia do acidente, ele confirmava tudo com a
cabeça e chorava.
Então cheguei no ponto que tinha mais a ver com
a história da pomada. Quando chegamos no hospital ele tinha que contar o que
aconteceu por mais medo que tivesse. Ele tinha que deixar as pessoas do hopital
verem e tocarem no machucado, por mais que doesse. Ele tinha que confiar nelas.
Ele tinha que esperar pra ser atendido. E quando chegava a enfermeira ou a
médica, ele tinha que deixar que elas cuidassem dele. Ele tinha que confiar
naquelas pessoas que nunca tinha visto antes. Falei de como ele teve que
aceitar ser anestesiado para a sutura. E tudo isso não é fácil, de maneira
nenhuma. Eu já passei por isso, falei. E por mais que houvessem outras
situações, a que me veio à mente com mais força para que eu pudesse contar foi
o nascimento dele mesmo. Falei de como tive que confiar em pessoas (sendo que a
maioria eu não conhecia). Falei de como me senti sozinha. De como foi difícil
pra mim, naquele momento, não ser forte o suficiente para cuidar dele, e ter
que ouvir o choro dele enquanto eu ficava deitada naquela cama na sala de
recuperação. De ouvir as enfermeiras com ele e de não ter poder nenhum de
decisão sobre o meu corpo ou sobre o dele. E de como, quando passou, tive que
esquecer tudo aquilo e superar para seguir com a vida. Mas que aquela situação
me mudou muito. Eu vi que ele também entendia tudo o que eu tinha passado.
Como era de se imaginar, eu também estava aos
prantos enquanto falava disso para o meu filho. Tive que admitir que não sou
toda-poderosa. Que num dos momentos mais importantes da nossa vida fui muito
frágil, indefesa. Eu então pedi perdão ao meu filho naquele momento por tudo
que aconteceu. A primeira vez que falei, acho que ele pensou que eu pedi perdão
pela pomada. Ele só disse “claro, né, mãe?” Nunca vou esquecer do tom na voz
dele enquanto falava isso. Então eu resolvi ser mais clara. Pedi perdão pela
pomada. E depois pedi perdão pelo que passamos quando ele nasceu. Por não ter
sido capaz de fazer diferente e lutar por nós. Perdão por não saber.
O renascer de mãe e filho de quase 8 anos |
Nos abraçamos no escuro e choramos juntos. Nos
olhamos nos olhos com a luz que vinha da fresta da porta e, ambos com os olhos
cheios de lágrimas, ambos cheios de emoções à flor da pele, ambos com empatia
um pelo outro e por si mesmo, ambos perdoando um ao outro e a nós mesmos.
Chorando e sorrindo. E foi então que eu senti que nosso momento roubado tinha sido
finalmente vivido de alguma forma. Nosso momento de imprinting, de
reconhecimento, de compreensão mútua e da conexão emocional mais íntima que
pode existir. Claro que já tivemos momentos super íntimos antes, que somos
conectados e que nos compreendemos. Mas não assim. Eu não tenho dúvidas de que
esse foi o momento mais bonito da minha vida. Foi quando me senti mais viva.
Parabéns Raquel por um momento tão libertador como esse. Estou orgulhosa por vocês.
ResponderExcluirParabéns Raquel por um momento tão libertador como esse. Estou orgulhosa por vocês.
ResponderExcluir