segunda-feira, 8 de junho de 2015

A interação que nos faz humanos

Acho que uma das grandes perguntas do ser humano é o que nos torna o que somos. E parece que uma das grandes coisas que nos separa dos outros primatas é justamente a capacidade de fazer perguntas. Um chimpanzé que aprende linguagem de sinais básicas para se comunicar com humanos consegue responder perguntas, mas não há registro de que eles tenham feito perguntas durante essas interações.

Mas quando exatamente o ser humano passa a ter essa capacidade? Sabemos que crianças de 3 a 5 anos, principalmente, passam por uma fase onde têm perguntas intermináveis: onde, como, por que, como funciona, por que não pode, por que precisa. Mas muito antes dessa idade já é possível perceber o interesse da criança no funcionamento do mundo. Meu filho tinha menos de dois anos quando se apaixonou profundamente pelas nuvens e pelo trovão. Ele parava e escutava atentamente aquele barulho e queria saber o significado. Explicamos ludicamente que “uma nuvem bate na outra e aí faz barulho e chove”. Ele passou a repetir a explicação pra quem quisesse ouvir cada vez que via as nuvens ou ouvia um trovão ou a chuva. Não sei dizer quando essa capacidade de perguntar e essa necessidade de explicar surgem, mas não tenho dúvidas de que elas têm muito a ver com a essência humana.

Acontece que nem todo ser humano desenvolve a capacidade de perguntar. Algumas semanas atrás, meu filho perguntou por que o Tarzan é mais forte que as outras pessoas, consegue subir nas árvores, se comunica com os animais e ainda assim consegue se comunicar com humanos. Tentei explicar sobre ele ter aprendido todas essas coisas enquanto crescia. Chegamos no assunto de crianças que cresceram na selva e, mesmo depois de encerrada nossa conversa, acabei procurando textos, teorias, notícias sobre aquilo que chamam de “feral children”: crianças criadas com animais e que adotaram comportamentos daquele grupo.

Li sobre crianças abandonadas ou perdidas e que foram adotadas por animais. Elas desenvolvem o comportamento que observam naquele grupo da qual se sentem parte. Em casos de negligência extrema onde a criança mora com a família ou outras pessoas mas não tem  a interação e o estímulo adequados, muitas vezes a criança também não desenvolve a linguagem, a comunicação e a capacidade de fazer perguntas. Algumas vezes a criança se recupera e volta a aprender, outras não. Depende por quanto tempo que ela foi exposta a essa situação e também da idade que ela tinha quando isso começou.

Então que interação é essa que nos torna humanos? Então falar com a criança é suficiente? Mas digamos que a criança cresça numa família de surdo-mudos. Isso obviamente não quer dizer que ela não se desenvolverá como ser humano. Não é a fala em si, mas a interação. Contato direto. Carinho, cuidado, alguém que mostre como o mundo funciona e que não tenha medo de fazer as perguntas junto com a criança. De olhar para as situações com curiosidade. De ouvir o que ela tem a dizer.

Em alguns dos projetos dos quais participo se avalia o desenvolvimento intelectual e motor da criança, além do comportamental. Comecei a me fazer muitas perguntas sobre o que influencia o desenvolvimento infantil em diversas fases. É muito claro o quanto as interações familiares durante a vida têm um impacto. Crianças de famílias com menos ou mais dinheiro, dessa ou daquela etnia, que falam uma ou outra língua em casa. Tudo isso afeta um pouquinho. É claro que para um desenvolvimento intelectual adequado é necessário um mínimo de acesso a alimentos e estímulos externos. Mas também são fatores determinantes a interação (o cuidado, o envolvimento emocional, um adulto constante em que se possa confiar) e o  estímulo ao aprendizado.

As conexões que nos fazem humanos são como uma teia
Aí está a pergunta que muitos pais se fazem: mas afinal que estímulo é esse? Preciso de brinquedos ultra-coloridos que cantam sozinhos? Preciso colocar música clássica para meu bebê e vídeos ensinando os números e o alfabeto para que ele aprenda a ler, escrever e debater as leis da física aos 3 anos de idade?

A resposta curta é não. A resposta longa é nããããããããão. Brincadeira. A resposta longa é que o estímulo que o bebê precisa não é esse. O bebê precisa de exemplo e carinho. Fala-se tanto por aí que para aprender a se alimentar bem a criança apenas precisa do exemplo dos pais. Ela vai comer o que eles comerem. Que para aprender a cuidar do meio-ambiente precisa de exemplo. Se você jogar lixo no chão ela também vai.

Então no desenvolvimento intelectual não é diferente. Se você passar horas no computador/tablet/smartphone é isso que a criança vai querer fazer. Se você viver com a televisão ligada, ela vai assistir. Se você ler, ela vai se interessar por livros. Se você olhar para a natureza (seja o céu, as plantas, os animais) com curiosidade, seu filho vai ter a mesma curiosidade. Se você andar pela rua com pressa de chegar ao destino, a criança não vai gostar. Porque é da natureza dela prestar atenção às coisas pelo caminho e ficar quinze minutos olhando a minhoca que ela viu na beirada do canteiro. Mas se você insistir muito em não olhar para o lado, com o tempo a criança vai perder esse interesse e essa capacidade.


O que nos faz humanos é muito complexo. É uma mistura de carga genética (inclusive a capacidade de aprender línguas está nos nossos genes) com diversas interações com o meio-ambiente. A cultura é algo fundamental no nosso desenvolvimento como seres humanos. E a transmissão da cultura começa na família, a primeira sociedade da qual a criança faz parte. Aí podemos também perguntar o que é a cultura. Mas aí eu não paro mais de falar! ;)

sábado, 6 de junho de 2015

Recuperando o imprinting roubado quase 8 anos após o nascimento

Alguns dias atrás tive um momento de intimidade emocional tão grande com meu filho que me inclino a comparar ao imprinting do nascimento. Aconteceu na hora de dormir e após um momento de descontrole meu onde tentei impor minha vontade sobre a dele.
Quando ele saiu do banho me mostrou uma bolinha vermelha que parecia uma mordida de mosquito. Quantas e quantas vezes na vida ele já havia me mostrado outras assim, pedindo sem palavras que eu passasse a pomadinha que ameniza coceira. Foi praticamente automático abrir a portinha do armário do banheiro e pegar a tal pomada. Já com a bolotinha de geléia no meu dedo, pronta para passar, ele demonstrou nojo e apreensão. A tal pomada não dói, não é nojenta, no máximo geladinha. E eu lembro, de criança, a sensação de alívio daquele geladinho.
Então, depois de um dia longo e cansativo, depois de me esforçar pra colocar meu filho na cama num horário decente porque no outro dia ele tinha aula, depois de cozinhar o melhor jantar que eu podia, depois de separar com carinho o pijama para que ele não passasse frio enquanto procurava, depois de escovarmos os dentes juntos, depois de fazer o meu melhor em todos os sentidos, ele não quis aceitar a simples pomadinha, um gesto de cuidado que tentei oferecer. Logo rotulei aquele comportamento de frescura, de exagero, e falei “vamos passar sim”. Peguei o braço dele e passei a pomadinha em um segundo, carinhosamente. Ele me olhou, com os olhos cheios de lágrimas já rolando abaixo pelas bochechas mais lindas desse mundo. E me falou “mãe, não foi tu mesma quem disse que só eu é que tenho direito de decidir qualquer coisa sobre meu corpo?”.
Meu mundo caiu. Que tipo de mãe sou eu? Como é que eu não tinha percebido a violência (por mais relativa que seja) do meu ato? Só porque eu estava cansada tinha o direito de passar por cima dos meus valores e daquilo de mais precioso que ensinei? A autonomia, independência, respeito por si mesmo e pelo outro. Quão importante era aquela pomada naquele momento? Não tinha nada a ver com a pomada, e sim com meu cansaço, adultismo e, por que não dizer, ego. Necessidade de mostrar quem é que manda, de mostrar como o meu ponto de vista sobre o assunto era mais válido que o dele e de encerrar o assunto. O que é que estou ensinando? Que tudo o que dizemos, por mais importante e verdadeiro que seja, perde o valor se quisermos demonstrar poder. O que eu faço agora? Como é que eu conserto a minha cagada?
Sentei e expliquei que sim, ele estava certo. Eu estava errada e tinha sido boba. Tinha me excedido. Mas eu concordava com ele e eu não tinha direito de ter feito o que fiz. Comentei que ele tinha estado mais sensível a coisas como aquela desde o acidente. Que havia passado a hesitar mais quando eu o toco. Perguntei se ele tinha medo e ele confirmou. Perguntei se ele sabia por que e ele negou. Resolvi que era um bom momento pra retomar mais uma vez o assunto do acidente. Eu entendia o que ele sentia e resolvi mostrar isso, porque ele não tinha as palavras. Eu já passei pelo que ele passou. Então falei muitas coisas e ele só confirmava com a cabeça, chorando. Que ele tinha ficado assustado quando aconteceu. Que ele tinha sentido dor. Que ele tinha sentido medo de contar como aconteceu, porque sabia que tinha feito “algo errado”. Reafirmei que o que ele tinha feito não era nada demais e ele não precisava sentir vergonha ou medo, por mais que não devesse repetir. E que apesar (ou por causa) desse medo de falar do que aconteceu, ele se mostrou muito forte. Mais forte do que era. Quis andar até o carro em vez de ser carregado. Falou que não sentia dor. Falou de assuntos triviais. Sorriu. E conforme eu falava disso que aconteceu no dia do acidente, ele confirmava tudo com a cabeça e chorava.
Então cheguei no ponto que tinha mais a ver com a história da pomada. Quando chegamos no hospital ele tinha que contar o que aconteceu por mais medo que tivesse. Ele tinha que deixar as pessoas do hopital verem e tocarem no machucado, por mais que doesse. Ele tinha que confiar nelas. Ele tinha que esperar pra ser atendido. E quando chegava a enfermeira ou a médica, ele tinha que deixar que elas cuidassem dele. Ele tinha que confiar naquelas pessoas que nunca tinha visto antes. Falei de como ele teve que aceitar ser anestesiado para a sutura. E tudo isso não é fácil, de maneira nenhuma. Eu já passei por isso, falei. E por mais que houvessem outras situações, a que me veio à mente com mais força para que eu pudesse contar foi o nascimento dele mesmo. Falei de como tive que confiar em pessoas (sendo que a maioria eu não conhecia). Falei de como me senti sozinha. De como foi difícil pra mim, naquele momento, não ser forte o suficiente para cuidar dele, e ter que ouvir o choro dele enquanto eu ficava deitada naquela cama na sala de recuperação. De ouvir as enfermeiras com ele e de não ter poder nenhum de decisão sobre o meu corpo ou sobre o dele. E de como, quando passou, tive que esquecer tudo aquilo e superar para seguir com a vida. Mas que aquela situação me mudou muito. Eu vi que ele também entendia tudo o que eu tinha passado.
Como era de se imaginar, eu também estava aos prantos enquanto falava disso para o meu filho. Tive que admitir que não sou toda-poderosa. Que num dos momentos mais importantes da nossa vida fui muito frágil, indefesa. Eu então pedi perdão ao meu filho naquele momento por tudo que aconteceu. A primeira vez que falei, acho que ele pensou que eu pedi perdão pela pomada. Ele só disse “claro, né, mãe?” Nunca vou esquecer do tom na voz dele enquanto falava isso. Então eu resolvi ser mais clara. Pedi perdão pela pomada. E depois pedi perdão pelo que passamos quando ele nasceu. Por não ter sido capaz de fazer diferente e lutar por nós. Perdão por não saber.
O renascer de mãe e filho de quase 8 anos

Nos abraçamos no escuro e choramos juntos. Nos olhamos nos olhos com a luz que vinha da fresta da porta e, ambos com os olhos cheios de lágrimas, ambos cheios de emoções à flor da pele, ambos com empatia um pelo outro e por si mesmo, ambos perdoando um ao outro e a nós mesmos. Chorando e sorrindo. E foi então que eu senti que nosso momento roubado tinha sido finalmente vivido de alguma forma. Nosso momento de imprinting, de reconhecimento, de compreensão mútua e da conexão emocional mais íntima que pode existir. Claro que já tivemos momentos super íntimos antes, que somos conectados e que nos compreendemos. Mas não assim. Eu não tenho dúvidas de que esse foi o momento mais bonito da minha vida. Foi quando me senti mais viva.